sábado, 24 de dezembro de 2016

É Natal! "Venite, venite in Bethlehem"

Nesta Noite Santa celebramos o Natal do Senhor. As nossas cidades estão mais iluminadas, o comércio mais colorido e repleto de sons doces e melodiosos. Enviamos saudações carinhosas aos nossos amigos e parentes, abraçamos aqueles que estão próximos,  choramos a saudade dos ausentes e contamos histórias cheias de nostalgia e ternura.
As nossas liturgias fazem memória da Encarnação do Verbo de Deus. Cantamos "Noite Feliz" e, de fato, parece que tudo está feliz e belo por um momento. Até mesmo a cena de uma família refugiada em um curral por ocasião do parto de seu primeiro e único filho, se nos apresenta como uma linda imagem, devidamente ornamentada e iluminada em um local de destaque nas igrejas e oratórios, atraindo os olhares curiosos das crianças e admirados dos demais fiéis. Não nos provoca algum escândalo ou horror.
O Natal é um tempo mágico, dizem alguns. Todos se tornam mais humanos e solidários, proclamam outros. Esquecemos que em algum lugar solitário, sob alguma ponte ou em uma rua qualquer de nossas grandes cidades, nos casebres pobres de nossas periferias e nas taperas de algum sítio esquecido se repete continuamente a escandalosa cena natalina. Cantamos "Ó vinde, ó vide até Belém!" mas a Belém de nossa imaginação fantasiosa está bem distante daquela Belém escolhida pelo Verbo da Vida como palco de sua União Definitiva com a Natureza Humana.
Deus escolhera a miséria e a pequenez, a humildade e a fragilidade, o abandono e a solidão para manifestar a omnipotência de sua Misericórdia. O Natal é tempo de descer de nossos palácios interiores, de abandonar o trono de nossa arrogância, de despir-nos da sede de poder e do orgulho que obscurece em nós a centelha divina do amor. É tempo de corrermos a Belém porque nos nasceu o Salvador que é Cristo, o Senhor. Encontraremos o menino e sua família e, se formos suficientemente atentos, veremos em seus rostos resplandecer o rosto de tantas famílias que nos recordam dia e noite a nossa responsabilidade por um mundo mais humano, por um mundo onde Cristo seja verdadeiramente a Única Luz.
Bom Natal! Santo Natal! Humano e Divino Natal!


Pe. Edson Bantim
24.12.2016

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Fé e itinerância fecunda

A fé cristã, em todos os tempos, esteve carregada de um sentido muito prático – vivencial, de modo que não se pode compreender a fé cristã se não através da itinerância que esta provoca no coração dos que se sentem atraídos pelo Cristo e, tendo renascido com ele através do Batismo, fazem parte de seu corpo peregrino que é a Igreja. Esta ação cristã recebe o nome de apostolado, por trazer presente nos tempos atuais a ação de Cristo mesmo que foi confiada aos apóstolos.
O apostolado cristão se efetiva através das ações empreendidas nos diversos serviços, ministérios e pastorais de que se ocupa a Igreja de Cristo para levar ao coração de todos os homens a mensagem do Evangelho. Deste modo, todos os instrumentos utilizados na ação pastoral devem visar acima de tudo o anúncio da Boa Nova da Salvação realizada pela paixão, morte e ressurreição de Cristo. “A Igreja nasceu para que, dilatando o Reino de Cristo por toda a terra para a glória de Deus Pai, torne os homens participantes da redenção salvadora e por meio deles todo o mundo seja efetivamente ordenado para Cristo”.(Apostolicam Actuositatem)
A vida em Cristo é dinâmica, cheia de ação. A Igreja é o corpo místico de Cristo, da qual todos nós somos membros. Ora, assim sendo, não pode existir num corpo um membro inerte, inútil, sem vida. Todos os membros do corpo agem em favor do corpo inteiro, se um membro pára, todo o corpo perde. Deste modo, são não só chamados, mas estão, de certo modo, obrigados pelo compromisso que assumiram com Cristo, de realizar no mundo a obra do Divino Redentor. “Impõe-se, portanto a todos os fiéis o sublime encargo de trabalharem para que a mensagem divina da Salvação seja conhecida e aceita por todos os homens, em toda a terra”. (Apostolicam Actuositatem)
A comunidade onde cada  cristão se reúne, está unida a toda Igreja de forma que cada ação realizada por qualquer pastoral, por menor e mais simples que seja, é uma ação de toda a Igreja e por conseguinte, é ação de Cristo. O Senhor, por muitas vezes interpela seus ouvintes acerca de seu compromisso com o Reino, e, apesar da incompreensão de muitos que o seguiam, que entendiam o Reino como uma realidade puramente imaterial, Jesus fez questão de afirmar “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar aos cativos a libertação e aos cegos, a recuperação da vista, para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar o ano de Graça do Senhor” (Lc 4,18-19). O Reino de Deus acontece quando nossa ação pastoral é capaz de trazer liberdade, trazer luz para os que estão cegos pela injustiça, banir do mundo a pobreza e tornar presente a Graça do Senhor.
O amor a Cristo não pode ser um amor vazio de gestos concretos. A maior prova de amor que podemos dar a Jesus é doando a nossa vida para que todos tenham vida em Seu nome. É nosso dever olhar para nossa própria vida e perceber de que modo estamos contribuindo para que a missão da Igreja de fazer presente o Reino de Amor trazido por Cristo se efetive no mundo.
É preciso fazer ressoar em nossos ouvidos, a cada amanhecer o forte mandado de Cristo: “Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos[...] eu estou convosco todos os dias até a consumação dos tempos”.(Mt 28,19a . 20b) A sua presença deve fazer arder o nosso coração como fez aos caminhantes de Emaús e nos levar a um maior comprometimento com a causa do Reino. A ação pastoral é o caminho onde podemos participar da missão de Jesus. Na pastoral usufruímos e testemunhamos a presença do Mestre, partilhamos de suas angústias e, com ele, alcançamos a gloria da vitória final.
Pe. Edson Bantim

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O mistério da morte no mistério de Cristo

É no mínimo insólito que alguém dedique tempo e energia para refletir sobre algo cuja realidade a mente procura armazenar em um ambiente o mais obscuro possível. Numa sociedade de luz, de cores, de muitos e intensos rumores, onde o mito do sucesso, do bem-estar e a filosofia da imagem se tornaram hegemônicos, não existe espaço para a reflexão sobre a morte. Esta é apenas um fato inevitável sim, mas desesperadamente inaceitável. Mesmo quando é exigida como um direito – como é o caso das lutas pelo direito à eutanásia -, se observamos atentamente, o é por temor da mesma, de sua imprevisibilidade. Teme-se o descontrole, a impotência diante da morte e se pede não a morte mas a capacidade de decidir sobre ela e libertar-se da angústia de sua certeza e da imprecisa ciência de sua chegada.
Estamos acostumados em nosso tempo a dar explicações racionais detalhadas sobre todos os fenômenos da vida, à morte, contudo, apesar das tentativas de decifrá-la, permanece sempre o limite de sua total ausência de significado racional: se nos apresenta insana a ideia do morrer. Quando nos referimos à morte nos vem imediatamente em mente o vazio que ela cria, de modo que a esta se faz presente ao nos confrontar com a ausência de quem amamos, de seu afeto, histórias, tom de voz, significados, etc. Como encontrar sentido para esta total e definitiva ausência dos seres amados e até de nós mesmos?
A fé cristã nos convida a perceber a morte como um mistério a ser contemplado à luz do Mistério de Cristo, de fato, morrer para o cristão significa incorporar-se plenamente e definitivamente a Cristo e por isso mesmo pode dizer com S. Paulo: “Para mim viver é Cristo e morrer é lucro” (Fl 1,21). No batismo somos já imersos na morte de Cristo para participarmos de sua Vida imortal. Deste modo, é o amor de Cristo a nos dar o sentido da morte, não nas categorias da ciência moderna, experimental, mas como mistério a ser contemplado tal qual o seu amor testemunhado eloquentemente em sua morte de cruz. Afinal, como afirmava o escritor alemão Thomas Mann, “é o amor, não a razão, que é mais forte que a morte”.
Neste dia cheio de saudades, de memórias e lágrimas, curvemo-nos diante do mistério da morte para contemplar a vitória de Cristo na vida de cada um daqueles que foram tocados por sua vitória na Cruz. A morte não nos deve ferir ou amedrontar se nos refugiarmos no amor de Cristo que é O Vivente. A saudade de quem amamos é “óleo de presença” lançado em nossas chagas de ausência, para que a suavidade das lembranças nos nutra a esperança do reencontro definitivo em Deus. Proclamemos com S. Inácio de Antioquia: “há em mim uma água viva que murmura e que diz dentro de mim: Vem para o Pai”. Longe, pois, de ser ausência de sentido, a morte em Cristo lança sobre a vida o seu significado mais profundo e sustenta toda a existência como sendo edifício construído sobre o alicerce do amor  e que, paradoxalmente, se realiza à medida em que se doa e se gasta como a chama crepitante no altar de Deus. “Louvado sejais, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. (...) felizes aqueles que ela encontrar conforme a vossa santíssima vontade, pois a segunda morte não lhes fará mal” (S. Francisco de Assis). O Senhor enxugue as lágrimas de todos os corações saudosos com o “lenço” bendito da Esperança e acolha a todos os nossos irmãos falecidos com o abraço regenerador de sua infinita e insondável Misericórdia.
Pe. Edson Bantim





sábado, 1 de outubro de 2016

Voto consciente: ser cristãos na vida pública.

Estamos nos aproximando do dia decisivo para a definição acerca da condução, pelos próximos anos, do destino de nosso país e nós cristãos, como cidadãos, devemos dar testemunho de nossa fé em Cristo também neste âmbito da vida pública. De fato, a separação entre fé e vida é um grave erro que compromete o próprio edifício da fé e a legitimidade de nosso seguimento a Jesus.
A Igreja, sempre preocupada com o bem integral de todos os povos, indica, no capítulo IV do Compêndio da doutrina social da Igreja, alguns elementos/princípios que convém retomar brevemente e considerá-los como instrumentos de discernimento acerca de nossa escolha política. Desta forma, ao refletir acerca dos candidatos, procuremos olhá-los através deste filtro da doutrina social da Igreja.

1.     O princípio do Bem comum
O primeiro princípio é aquele referido ao Bem a ser procurado. Na comunidade política o bem comum constitui o bem moral a ser realizado pelas ações individuais e coletivas. Um candidato ao serviço público deve primar pelo bem comum, que não deve ser confundido com a soma do bem-estar de cada indivíduo, mas constitui aquele estado de coisas em que cada pessoa pode encontrar as condições necessárias para sua realização plena como protagonista de sua própria existência. Pergunte-se, pois, antes de votar em alguém: este candidato propõe um projeto político que dá condições para a realização do bem comum ou procura apenas os seus interesses e os de seu grupo?
2.     O princípio da destinação universal dos bens
“A destinação universal dos bens comporta, portanto, um esforço comum que mira obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano” (CDSI, n. 175). A comunidade política deve garantir, sobretudo, que os bens naturais sejam de acesso a todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, deve criar as condições de acesso comum aos bens materiais que cada pessoa necessita como condição para o pleno exercício de sua liberdade e autonomia política de modo que o candidato aos cargos públicos não pode fazer da assistência social um instrumento de manipulação dos pobres e de domínio dos mais necessitados. Pergunte-se, pois, antes de votar em alguém: este candidato se propõe a garantir, de forma equitativa, o acesso aos bens a todos os cidadãos de forma que estes possam crescer em autonomia e liberdade ou se utiliza da fragilidade e pobreza dos cidadãos para garantir a realização de seu próprio enriquecimento e da manutenção de sua condição de poder?
3.     O princípio da subsidiariedade
Este princípio diz respeito ao dever do Estado de ser subsidium, auxílio às instituições e organismos de menor  porte no exercício de suas funções sociais de modo que exerçam a corresponsabilidade na promoção do Bem comum e do progresso integral de todos os indivíduos e grupos. Deve, portanto, o Estado, “abster-se de tudo o que, de fato, restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade. Não se deve suplantar a sua iniciativa, liberdade e responsabilidade” (CDSI, n. 186). Pergunte-se, pois, antes de votar em alguém: este candidato se propõe em seu projeto de governo, a garantir o direito às associações legítimas, às famílias e aos diversos grupos religiosos de exercerem, no âmbito que lhe é próprio, a liberdade e a autonomia, a participação no destino da própria comunidade política e o direito de viverem segundo seus valores e em obediência às próprias consciências ou pretende impor um determinado estilo de vida ou de organização social baseado em ideologias exclusivistas e agressivas à liberdade individual e coletiva?
4.     O princípio de participação
Deriva do princípio de subsidiariedade e constitui-se na garantia de que a sociedade seja sujeito de seu próprio destino, de modo democrático e equilibrado. “Isto implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha” (CDSI, n. 190). Pergunte-se, pois, antes de votar em alguém: este candidato pretende garantir o direito à participação, promovendo as formas democráticas de decisão acerca do destino da sociedade ou representa apenas o seu grupo e toma decisões arbitrárias impondo ao restante da comunidade civil aquilo que lhe convém?
5.     O princípio de solidariedade
Este princípio nasce, sobretudo, do reconhecimento da condição de interdependência entre os indivíduos e os grupos sociais. Um bom governante deve estimular a solidariedade entre os indivíduos e os grupos sociais, promovendo a comunhão entre os diferentes e a co-participação na promoção da dignidade de todos, sem proselitismos ou privilégios injustos. Pergunte-se, pois, antes de votar em alguém: este candidato é movido por sentimentos de solidariedade e seu projeto político contempla a dimensão da solidariedade entre os indivíduos e grupos ou é movido por sentimentos de sectarismos e tende a incitar a aversão, a competição, o proselitismo e a divisão entre as pessoas e grupos sociais?
Estes cinco princípios devem nos ajudar na escolha dos dirigentes de nosso país e de nossos estados e orientar a nós mesmos no nosso comportamento social e político. Como cristãos, tais valores civis se impõem como dever moral de testemunho do Evangelho de Cristo, que pretende ser no mundo um farol a iluminar os povos no caminho que conduz à plena realização no Reino de Deus. Para a efetivação de tais princípios é imprescindível a prática dos valores fundamentais da vida social: a verdade, a liberdade e a justiça. Tais valores garantem que a vida comum dos povos seja lugar privilegiado da práxis cristã e ao mesmo tempo espaço de construção de um progresso integral e integrado do ser humano. Ademais, cada cristão se recorde de seu dever fundamental para com a caridade frutífera (OT, 16) decorrente de sua união de amor com Jesus Cristo. É a caridade, de fato, a seiva que nos nutre a partir do coração da Videira Verdadeira (Jo 15,1ss) que é Cristo Jesus e permite que cada uma de nossas ações seja verdadeiramente obra do Espírito Santo em nós. O Senhor nos dê sabedoria e retidão de consciência para que sejamos, também no ambiente político, instrumentos da redenção universal operada pelo Senhor em sua total entrega de amor na cruz.


Pe. Edson Bantim

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Missão e Vida Cristã

A Igreja, nos últimos decênios, apesar das inúmeras intervenções do magistério oficial acerca do anúncio do Evangelho, tem perdido, consideravelmente, a sua identidade missionária, sobretudo, no que concerne à difusão dos valores que emanam da Palavra de Deus e que caracterizam a Vida Nova e o Reino anunciado e testemunhado por Jesus Cristo.
O imenso avanço do individualismo e sua incidência sobre a forma mentis das novas gerações, bem como das novas formas de fundamentalismo e de “cristianismo gnóstico”, fez com que a missão e a salvação cristãs fossem compreendidas de modo intimista e referidas unicamente ao indivíduo, ou seja, desprovidas de um conteúdo social.
Ademais, ocorre em nossos dias, uma forte separação entre anúncio do conteúdo do kerygma e vida privada dos cristãos, como se a Boa Nova cristã não fosse mais que uma simples informação, sem algum valor incisivo sobre o comportamento e a perspectiva de vida daqueles e daquelas que se auto-identificam como cristãos. Tal situação produz uma profunda crise de sentido nos membros da comunidade cristã ao passo que desprovê de significado para o mundo o próprio evangelho e a vida que dele emerge.
O recente Magistério da Igreja, observando a distinção feita por João XXIII por ocasião da convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II entre a substância do anúncio cristão e a formulação de que se reveste para tornar-se compreensível e fiel ao espírito do Evangelho[1], tem procurado despertar a comunidade dos fiéis para o seu dever de encontrar, com o auxílio do Espírito Santo e o esforço dos teólogos, o caminho correto e a linguagem adequada para a comunicação, em maneira nova, das verdades eternas reveladas na pessoa de Jesus Cristo.
Em Evangelii gaudium Francisco alerta para o fato de que, “por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo […] Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância”[2]. Tal dissonância entre substância e formulação é superada quando compreendemos a metodologia da “saída”, que ao mesmo tempo em que recupera a intimidade da comunidade cristã com o seu Mestre, reconstrói a própria identidade eclesial de “povo de Deus em caminho”.

A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão ‘reveste essencialmente a forma de comunhão missionária. Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém[3].

A Igreja, como compreende papa Francisco, é uma comunidade de testemunhas em saída. Esta saída deve ser entendida não somente no sentido geográfico, mas, sobretudo, no sentido existencial e moral. Sair significa em um primeiro momento submeter-se ao processo de Kénosis ao qual se submeteu o Senhor e, em seguida, encontrar o outro, compreendê-lo como realidade inerente à nossa própria existência e dar-lhe um significado.
Deste modo, a questão do sentido em teologia moral ganha um espaço de desenvolvimento. A significância do discurso ético se encarna nas narrativas da vida cotidiana e na experiência moral dos homens e mulheres que o discípulo missionário encontra pelo caminho. A halakah cristã se torna um caminho a ser percorrido na companhia dos irmãos. Mais que isso, se torna lugar de encontro com outros irmãos e de partilha de experiências de vida que ao mesmo tempo em que são enriquecidas pelo anúncio explícito do Evangelho, enriquecem o missionário confrontando-o com os desafios próprios de cada caminho. É, portanto, no encontro com os caídos à margem dos caminhos da história, que os discípulos de Cristo constroem e reafirmam a sua identidade de “próximos” da humanidade, de irmãos do Senhor que se encarregam, em primeira pessoa, da defesa da vida e da dignidade de todos e cada um de seus semelhantes.
Evangelii gaudium põe as bases para uma nova eclesiologia, bem como para uma nova compreensão da missão e da moral da Igreja. Francisco conjuga práxis cristã com anúncio missionário, compreendendo anúncio como testemunho coerente do Evangelho e este último como sendo a atitude de saída até às periferias do mundo e da existência humana para carregar sobre si as feridas da humanidade e encontrar, através do esforço comum, o óleo da consolação que alivia e restaura as forças de cada caminhante. Deste modo, afirma Francisco, “o conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade”[4].

a) Dever de caridade para com toda a criação
O imperativo da missão é entendido em sentido abrangente[5], ou seja, compreende-se como destinatários da ação do missionário, não somente as pessoas mas todas as obras da Criação. Desta forma, Papa Francisco propõe, em Laudato si um compromisso para com a proteção e o cuidado para com a Natureza como lugar sagrado de convivência humana, casa comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos.

Se, pelo simples fato de serem humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte, ‘os cristãos, em particular, advertem que sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé’[6].

A missão assume, portanto, cada vez mais o caráter de compromisso com o testemunho de vida cristã, entendida como serviço a todos e cada ser humano, bem como ao ambiente no quel este vive e se realiza. É a práxis cristã que constitui o lugar de proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo. Não se pode pensar, na perspectiva da eclesiologia de Francisco – que segue aquela eclesiologia de Gaudium et spes e Lumen gentium – um anúncio missionário sem a devida conversão aos valores fundamentais do Evangelho de Jesus Cristo.

b) Pecados contra o compromisso missionário
Para que cumpra a sua missão a Igreja deve evitar três pecados assinalados por Francisco no número vinte e três de Evangelii gaudium: a demora, a repugnância e o medo[7]. Estes três pecados contra a missionariedade são a razão pela qual a Igreja e os cristãos individualmente, perdem sua credibilidade, sua autoridade moral e seu significado para o mundo, devendo, pois, ser superados e vencidos em suas raízes.
O grito dos pobres, dos excluídos econômica e socialmente chega aos ouvidos de Deus e o Senhor, desde a “sarça ardente” (cf. Ex 3,1ss) de nossas consciências, nos envia a libertá-los. Este envio não admite retardos, não permite demoras, não suporta a preguiça e a tibieza. Urge portanto, uma resposta concreta dos cristãos ao chamado de Deus para a missão de ser testemunhas de seu Reino.
O magistério de Francisco exprime esta urgência ao mesmo tempo em que, sem demoras, responde às necessidades deste nosso tempo. Todo o ministério do sucessor de Pedro está profundamente marcado por esta urgência missionária e salvífico-libertadora. Cada gesto, cada homilia, cada escrito está marcado por esta necessidade de resposta ao clamor do mundo, sobretudo dos pobres e marginalizados.
A missão cristã não pode ter repugnância das feridas dos pobres e pecadores. Se elas são fétidas, assim o são apenas pela longa nossa atitude de indiferença. Cabe agora à Igreja oscular tais chagas como se as mesmas pertencessem a Cristo. De fato, foi o próprio Senhor a afirmar que “tudo o que fizermos a um destes pequeninos é a ele que o fazemos” (cf. Mt 25, 40) Muitas vezes o sucessor de Pedro, desde o início de seu pontificado, desceu às periferias geográficas e existenciais e tocou as feridas da humanidade sem delas nutrir qualquer repugnância, ao contrário, versando o óleo da caridade que atrai o olhar dos pecadores à misericórdia, suscita no coração dos perdidos a esperança e comunica à multidão de mortos por causa do mal que subjuga o mundo, a Vida Nova que Ele conquistou para nós no altar da Cruz.
Por fim, o anúncio cristão deve superar qualquer sentimento de medo que submete as consciências e provoca inércia na difusão da Boa Nova de libertação que emerge da vida em Cristo. A covardia dos medrosos é, por vezes, mais danosa ao Evangelho que a ação dos inimigos de Cristo. De fato, o medo é o princípio da indiferença. Por temor aprendemos a não olhar para as sombras que cada vez mais se aproximam e se nos sufoca. Faz-se necessária a intrépida proclamação da liberdade para a qual Cristo nos libertou (cf. Gl 5,1) através de um corajoso testemunho de vida e de amor a Deus e àqueles pelos quais entregou seu Filho.
A Igreja de Cristo é, por sua natureza, uma comunidade de testemunhas e de missionários em saída apressada para acolher e sanar, com aquela ternura e coragem próprias de seu Mestre, as feridas de todos os homens e mulheres de todos os tempos, bem como de toda a obra da Criação, fruto do amor transbordante e misericordioso de Deus.
A perspectiva eclesiológica de Francisco põe a Igreja de volta sobre os passos de Jesus, o missionário do Pai, ao mesmo tempo em que desperta a consciência de cada cristão para a necessidade do testemunho de vida coerente com os valores do Evangelho. Esta, de fato, é a forma mais eloquente de anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo.
Ao discípulo missionário, filho da Igreja, cabe enfrentar a indiferença em relação à dignidade da vida humana e natural com o testemunho de fidelidade a Cristo em seu amor oblativo pelo projeto do Pai. Deste modo, o fiel cristão procura tornar significativos os valores do Evangelho através dos sinais que este realiza em sua própria vida.
O empenho missionário, na perspectiva de Francisco, consiste em um profundo amor pelo ser humano e consequentemente por todas as obras da criação, de forma que em cada missionário da Igreja resplandeça a face de Jesus, o rosto misericordioso do pai[8]. Trata-se de um amor que impele à saída apressada e corajosa para encontrar todos aqueles que constituem os prediletos de Deus, os pequeninos do Reino, com os quais o Senhor mesmo se identifica.
De sua parte, a teologia moral deve compreender sua missão como referida ao compromisso com o mundo e com o Evangelho. Faz-se cada vez mais necessária a superação de uma moral intimista, referida unicamente ao indivíduo e à sua vida privada para entende-la no contexto mais amplo da vida humana e natural, das questões sócio-política-econômicas e ecológicas.
Aqui, portanto, não consiste em uma simples reflexão sobre realidades que se nos põe diante dos olhos, mas da realidade mesma do ser humano de nosso tempo que se encontra tecida na complexa rede das existências, de modo que o teólogo moralista deve pensar-se inserido nesta rede e não como um observador indiferente. É nisto que se encontra a novidade do magistério de Francisco, ele não fala ao mundo a partir de sua “cátedra” ele fala ao mundo a partir das próprias realidades às quais se dirige. Mais que um mestre, se faz companheiro, co-discípulo que procura entender a vontade do único Mestre e intuir o modo mais coerente de realizá-la. É a lição mais urgente e mais decisiva de nosso tempo. Dela depende a credibilidade do anúncio cristão e a legitimidade dos valores evangélicos.
 Pe. Edson Bantim













[1] João XXIII, Discurso inaugural do Concílio Vaticano II. (11 de outubro de 1962), VI, 5. In AAS 54 (1962), 792.
[2] EG, n. 41.
[3] EG, n. 23.
[4] EG, n. 177.
[5] Cf. EG, n. 179.
[6] LS, 64.
[7] Cf. EG, n.23.
[8] Francico, Misericordiae vultus, n.1.