quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Missão e Vida Cristã

A Igreja, nos últimos decênios, apesar das inúmeras intervenções do magistério oficial acerca do anúncio do Evangelho, tem perdido, consideravelmente, a sua identidade missionária, sobretudo, no que concerne à difusão dos valores que emanam da Palavra de Deus e que caracterizam a Vida Nova e o Reino anunciado e testemunhado por Jesus Cristo.
O imenso avanço do individualismo e sua incidência sobre a forma mentis das novas gerações, bem como das novas formas de fundamentalismo e de “cristianismo gnóstico”, fez com que a missão e a salvação cristãs fossem compreendidas de modo intimista e referidas unicamente ao indivíduo, ou seja, desprovidas de um conteúdo social.
Ademais, ocorre em nossos dias, uma forte separação entre anúncio do conteúdo do kerygma e vida privada dos cristãos, como se a Boa Nova cristã não fosse mais que uma simples informação, sem algum valor incisivo sobre o comportamento e a perspectiva de vida daqueles e daquelas que se auto-identificam como cristãos. Tal situação produz uma profunda crise de sentido nos membros da comunidade cristã ao passo que desprovê de significado para o mundo o próprio evangelho e a vida que dele emerge.
O recente Magistério da Igreja, observando a distinção feita por João XXIII por ocasião da convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II entre a substância do anúncio cristão e a formulação de que se reveste para tornar-se compreensível e fiel ao espírito do Evangelho[1], tem procurado despertar a comunidade dos fiéis para o seu dever de encontrar, com o auxílio do Espírito Santo e o esforço dos teólogos, o caminho correto e a linguagem adequada para a comunicação, em maneira nova, das verdades eternas reveladas na pessoa de Jesus Cristo.
Em Evangelii gaudium Francisco alerta para o fato de que, “por vezes, mesmo ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo […] Deste modo, somos fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância”[2]. Tal dissonância entre substância e formulação é superada quando compreendemos a metodologia da “saída”, que ao mesmo tempo em que recupera a intimidade da comunidade cristã com o seu Mestre, reconstrói a própria identidade eclesial de “povo de Deus em caminho”.

A intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão ‘reveste essencialmente a forma de comunhão missionária. Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém[3].

A Igreja, como compreende papa Francisco, é uma comunidade de testemunhas em saída. Esta saída deve ser entendida não somente no sentido geográfico, mas, sobretudo, no sentido existencial e moral. Sair significa em um primeiro momento submeter-se ao processo de Kénosis ao qual se submeteu o Senhor e, em seguida, encontrar o outro, compreendê-lo como realidade inerente à nossa própria existência e dar-lhe um significado.
Deste modo, a questão do sentido em teologia moral ganha um espaço de desenvolvimento. A significância do discurso ético se encarna nas narrativas da vida cotidiana e na experiência moral dos homens e mulheres que o discípulo missionário encontra pelo caminho. A halakah cristã se torna um caminho a ser percorrido na companhia dos irmãos. Mais que isso, se torna lugar de encontro com outros irmãos e de partilha de experiências de vida que ao mesmo tempo em que são enriquecidas pelo anúncio explícito do Evangelho, enriquecem o missionário confrontando-o com os desafios próprios de cada caminho. É, portanto, no encontro com os caídos à margem dos caminhos da história, que os discípulos de Cristo constroem e reafirmam a sua identidade de “próximos” da humanidade, de irmãos do Senhor que se encarregam, em primeira pessoa, da defesa da vida e da dignidade de todos e cada um de seus semelhantes.
Evangelii gaudium põe as bases para uma nova eclesiologia, bem como para uma nova compreensão da missão e da moral da Igreja. Francisco conjuga práxis cristã com anúncio missionário, compreendendo anúncio como testemunho coerente do Evangelho e este último como sendo a atitude de saída até às periferias do mundo e da existência humana para carregar sobre si as feridas da humanidade e encontrar, através do esforço comum, o óleo da consolação que alivia e restaura as forças de cada caminhante. Deste modo, afirma Francisco, “o conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade”[4].

a) Dever de caridade para com toda a criação
O imperativo da missão é entendido em sentido abrangente[5], ou seja, compreende-se como destinatários da ação do missionário, não somente as pessoas mas todas as obras da Criação. Desta forma, Papa Francisco propõe, em Laudato si um compromisso para com a proteção e o cuidado para com a Natureza como lugar sagrado de convivência humana, casa comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos.

Se, pelo simples fato de serem humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte, ‘os cristãos, em particular, advertem que sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé’[6].

A missão assume, portanto, cada vez mais o caráter de compromisso com o testemunho de vida cristã, entendida como serviço a todos e cada ser humano, bem como ao ambiente no quel este vive e se realiza. É a práxis cristã que constitui o lugar de proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo. Não se pode pensar, na perspectiva da eclesiologia de Francisco – que segue aquela eclesiologia de Gaudium et spes e Lumen gentium – um anúncio missionário sem a devida conversão aos valores fundamentais do Evangelho de Jesus Cristo.

b) Pecados contra o compromisso missionário
Para que cumpra a sua missão a Igreja deve evitar três pecados assinalados por Francisco no número vinte e três de Evangelii gaudium: a demora, a repugnância e o medo[7]. Estes três pecados contra a missionariedade são a razão pela qual a Igreja e os cristãos individualmente, perdem sua credibilidade, sua autoridade moral e seu significado para o mundo, devendo, pois, ser superados e vencidos em suas raízes.
O grito dos pobres, dos excluídos econômica e socialmente chega aos ouvidos de Deus e o Senhor, desde a “sarça ardente” (cf. Ex 3,1ss) de nossas consciências, nos envia a libertá-los. Este envio não admite retardos, não permite demoras, não suporta a preguiça e a tibieza. Urge portanto, uma resposta concreta dos cristãos ao chamado de Deus para a missão de ser testemunhas de seu Reino.
O magistério de Francisco exprime esta urgência ao mesmo tempo em que, sem demoras, responde às necessidades deste nosso tempo. Todo o ministério do sucessor de Pedro está profundamente marcado por esta urgência missionária e salvífico-libertadora. Cada gesto, cada homilia, cada escrito está marcado por esta necessidade de resposta ao clamor do mundo, sobretudo dos pobres e marginalizados.
A missão cristã não pode ter repugnância das feridas dos pobres e pecadores. Se elas são fétidas, assim o são apenas pela longa nossa atitude de indiferença. Cabe agora à Igreja oscular tais chagas como se as mesmas pertencessem a Cristo. De fato, foi o próprio Senhor a afirmar que “tudo o que fizermos a um destes pequeninos é a ele que o fazemos” (cf. Mt 25, 40) Muitas vezes o sucessor de Pedro, desde o início de seu pontificado, desceu às periferias geográficas e existenciais e tocou as feridas da humanidade sem delas nutrir qualquer repugnância, ao contrário, versando o óleo da caridade que atrai o olhar dos pecadores à misericórdia, suscita no coração dos perdidos a esperança e comunica à multidão de mortos por causa do mal que subjuga o mundo, a Vida Nova que Ele conquistou para nós no altar da Cruz.
Por fim, o anúncio cristão deve superar qualquer sentimento de medo que submete as consciências e provoca inércia na difusão da Boa Nova de libertação que emerge da vida em Cristo. A covardia dos medrosos é, por vezes, mais danosa ao Evangelho que a ação dos inimigos de Cristo. De fato, o medo é o princípio da indiferença. Por temor aprendemos a não olhar para as sombras que cada vez mais se aproximam e se nos sufoca. Faz-se necessária a intrépida proclamação da liberdade para a qual Cristo nos libertou (cf. Gl 5,1) através de um corajoso testemunho de vida e de amor a Deus e àqueles pelos quais entregou seu Filho.
A Igreja de Cristo é, por sua natureza, uma comunidade de testemunhas e de missionários em saída apressada para acolher e sanar, com aquela ternura e coragem próprias de seu Mestre, as feridas de todos os homens e mulheres de todos os tempos, bem como de toda a obra da Criação, fruto do amor transbordante e misericordioso de Deus.
A perspectiva eclesiológica de Francisco põe a Igreja de volta sobre os passos de Jesus, o missionário do Pai, ao mesmo tempo em que desperta a consciência de cada cristão para a necessidade do testemunho de vida coerente com os valores do Evangelho. Esta, de fato, é a forma mais eloquente de anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo.
Ao discípulo missionário, filho da Igreja, cabe enfrentar a indiferença em relação à dignidade da vida humana e natural com o testemunho de fidelidade a Cristo em seu amor oblativo pelo projeto do Pai. Deste modo, o fiel cristão procura tornar significativos os valores do Evangelho através dos sinais que este realiza em sua própria vida.
O empenho missionário, na perspectiva de Francisco, consiste em um profundo amor pelo ser humano e consequentemente por todas as obras da criação, de forma que em cada missionário da Igreja resplandeça a face de Jesus, o rosto misericordioso do pai[8]. Trata-se de um amor que impele à saída apressada e corajosa para encontrar todos aqueles que constituem os prediletos de Deus, os pequeninos do Reino, com os quais o Senhor mesmo se identifica.
De sua parte, a teologia moral deve compreender sua missão como referida ao compromisso com o mundo e com o Evangelho. Faz-se cada vez mais necessária a superação de uma moral intimista, referida unicamente ao indivíduo e à sua vida privada para entende-la no contexto mais amplo da vida humana e natural, das questões sócio-política-econômicas e ecológicas.
Aqui, portanto, não consiste em uma simples reflexão sobre realidades que se nos põe diante dos olhos, mas da realidade mesma do ser humano de nosso tempo que se encontra tecida na complexa rede das existências, de modo que o teólogo moralista deve pensar-se inserido nesta rede e não como um observador indiferente. É nisto que se encontra a novidade do magistério de Francisco, ele não fala ao mundo a partir de sua “cátedra” ele fala ao mundo a partir das próprias realidades às quais se dirige. Mais que um mestre, se faz companheiro, co-discípulo que procura entender a vontade do único Mestre e intuir o modo mais coerente de realizá-la. É a lição mais urgente e mais decisiva de nosso tempo. Dela depende a credibilidade do anúncio cristão e a legitimidade dos valores evangélicos.
 Pe. Edson Bantim













[1] João XXIII, Discurso inaugural do Concílio Vaticano II. (11 de outubro de 1962), VI, 5. In AAS 54 (1962), 792.
[2] EG, n. 41.
[3] EG, n. 23.
[4] EG, n. 177.
[5] Cf. EG, n. 179.
[6] LS, 64.
[7] Cf. EG, n.23.
[8] Francico, Misericordiae vultus, n.1.