segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Da indiferença ao cuidado: uma missão de afeto


A nossa geração – que nasceu à margem dos anos oitenta – cresceu sob o mito do progresso, do desenvolvimento científico-tecnológico, da superação de uma sociedade fundada sobre rígidos e “opressivos” princípios morais. Aprendemos que a liberdade é a grande conquista da geração que nos precedeu – aquela que teve que lidar com o drama do pós-guerra – e que, por esse motivo, é nosso dever tutelá-la e ampliá-la o mais possível. Vimos o nascer dos grandes mass-media e depois da internet e de sua difusão como instrumento de conexão entre pessoas de todo o mundo, agora transformado no que fomos acostumados a chamar de “aldeia global”. Somos a geração que saiu de casa cedo, que investiu na formação intelectual, na autonomia financeira, no rompimento de vínculos considerados antiquados e limitantes – inclusive aqueles familiares. Aprendemos que não se deve perder tempo com sentimentos, que devemos ser fortes ou estaremos fadados ao fracasso. Trabalhamos incansavelmente para vivermos bem e descansarmos quando já não resta tanto para se viver.
Esta geração de “vencedores” fez um esforço “sobre-humano” para estabelecer as suas conquistas, para garantir o seu espaço e para sobreviver à concorrência a que foram instigados a cultivar. Contemporaneamente, devido à exagerada preocupação por conquistar um lugar em meio a um mundo excessivamente competitivo, cada vez mais, nossa geração foi se tornando egocêntrica e utilitarista. O valor dado a cada pessoa passou a corresponder ao que esta pode oferecer à sociedade em termos, predominantemente, materiais. Deste modo, a parte considerada “inábil” – para não dizer “inútil” – da sociedade é relegada ao desprezo e ao abandono. Primamos pela competência e pelo pragmatismo. Estes não dão espaço a realidades como “amor desinteressado”, cuidado, sonho, afeto, ternura, gentileza. Para sobrevivermos foi preciso que matássemos o que de humano existira em nós, e assim, tragicamente descobrimos que “o teto que ganhamos nos roubou a capacidade de admirar as estrelas”.
Nos tornamos aos poucos insensíveis e indiferentes a tudo o que é imaterial e aparentemente «improdutivo». De fato, o mal de nosso século não é uma realidade exterior ao ser-humano, mas é uma profunda ferida em seu interior; um vazio de humanidade, de amor, de cuidado, de afeto que resultam de sua atitude de «indiferença». Ironicamente, negamos e suprimimos as emoções que nos punham em relação de proximidade uns com os outros e cultivamos aquelas que enaltecem o nosso Ego e transformam o outro num concorrente a ser vencido a qualquer custo. O outro não tem importância desde que não nos atrapalhe em nossa corrida insana pelo sucesso, pelo poder, pela riqueza. A indiferença ao outro tornou-se a forma natural de agir das sociedades contemporâneas.
 No dia 8 de julho de 2013, pouco depois de tornar-se o pastor universal da Igreja Católica Romana, Papa Francisco visitou a ilha italiana de Lampedusa, onde milhares de imigrantes desembarcam em fuga das condições degradantes de suas terras de origem. Em sua homilia Francisco faz uma grave advertência acerca deste mal que consome a nossa humanidade e nos torna “polidamente selvagens”.
“A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa! Reaparece a figura do «Inominado» de Alexandre Manzoni. A globalização da indiferença torna-nos a todos «inominados», responsáveis sem nome nem rosto”, diz o Papa.
Isto não significa que nossas sociedades não se preocupem com os problemas mundiais. O que se revela é justamente o contrário: cresce consideravelmente a preocupação com o meio-ambiente, com as pessoas em situações menos favorecidas, com os habitantes das zonas de conflito etc. Como bem observa o sociólogo polaco Zigmunt Bauman, “a ascensão espetacular da autorreferencialidade egoística caminha, paradoxalmente, a par de uma crescente sensibilidade à miséria humana, à execração da violência, da dor e do sofrimento que afligem o mais distante dos estranhos, e às erupções regulares de caridade focalizada (terapêutica)”[1]
Como bem descreve Bauman, tais “impulsos morais” e “erupções de caridade”, estão relacionados, quase sempre, às realidades o mais distante possível dos indivíduos que as sentem. Em síntese, a sensibilidade em relação ao sofrimento do outro se ativa se este “outro” estiver muito longe e se isso não exigir uma ação direta. Quando se trata de agir em favor de uma outra coisa (ou alguém) que não seja nós mesmos, as exigências do Ego, as paixões, o bem-estar pessoal, a comodidade física e econômica estão em primeiro e último lugares. Na verdade, nosso sentimento de caridade e de preocupação com a dor alheia não está ligado a um compromisso de agir em consequência. Nos comovemos com o sofrimento do distante, com as grandes causas ambientais que são amplamente propagandeadas pelos mass media, mas continuamos indiferentes ao sofrimento de quem está próximo e não estamos dispostos a assumir um estilo de vida ecologicamente sustentável.
A indiferença em relação ao próximo não é privilégio dos ricos e abastados. Tornou-se o estilo de vida preponderante. Nos países pobres, com extrema desigualdade social, as pessoas simplesmente habituaram-se com tal realidade, tanto os ricos como os miseráveis. O espectro da indiferença, paradoxalmente, não é indiferente a ninguém. Atinge todas as classes, raças e culturas. A consequência é que tendo-nos acostumado a sermos indiferentes aos outros, acabamos por ser indiferentes a nós mesmos. Nossa alma humana, desnutrida e desesperada aos poucos morre dentro de nós. Em termos concretos, basta observarmos o alto índice de doenças mentais como a depressão, a ansiedade, a síndrome de pânico etc. Segundo dados da OMS de 2014, por exemplo, cerca de 800 mil pessoas se suicidam por ano. Apesar da predominância ser entre os maiores de 65 anos, assusta o fato de que a quarta maior causa de morte entre jovens de 15 – 29 anos seja o suicídio.
Muitas são as teorias e pseudo-explicações acerca dos motivos pelos quais a nossa sociedade tornou-se desiludida da vida ou simplesmente ignora o significado da própria existência. Há porém uma constante em todas elas: o isolamento sócio-emocional. O efeito direto da indiferença em relação aos semelhantes não produz consequências apenas sobre os abandonados, pois à medida em que desconsidero a importância do outro, experimento em mim mesmo a solidão provocada pelo meu Ego inflado. Compreendemos o amor como um dever do outro para comigo e não como doação incondicional, como movimento desinteressado na direção de alguém que, não necessariamente, o mereça ou o exija. Eliminamos do amor o sentido do sacrifício.
Em geral, segundo Z. Bauman, “as manifestações de devoção a essa ‘outra coisa (ou alguém) que não a nós mesmos’, ainda que sinceras, apaixonadas e intensas, não chegam ao autossacrifício.”[2] Longe de querermos renunciar a determinadas comodidades a que consideramos razão de ser da nossa felicidade, da nossa independência/liberdade, tendemos a afastar de nós tudo o que nos limita ou que nos impõe a necessidade de escolha radical. Tudo o que implica perda é considerado como mal e, por conseguinte, deve ser evitado.
Contemporaneamente, as estruturas de organização social de nosso tempo se formaram de tal modo a exigirem dos indivíduos determinados comportamentos consequentes e aparentemente inevitáveis. A necessidade de trabalhar o dia todo e todos os dias, a necessidade de prover à família um estilo de vida padrão que se adeque às exigências conceituais dos “formadores de opinião” ocupa o lugar dos abraços, do afetos, dos encontros e desencontros meramente humanos. É mais importante que se vá ao balé, à ginástica, à aula de inglês que passear de mãos dadas com a família em uma tarde no parque, que sentar ao pé da avó que já não consegue interagir verbalmente, que estar em família.
A extinção dos espaços de convivência, das relações desinteressadas e carregadas de conteúdo humanizante tem provocado danos quase irreparáveis na sensibilidade das novas gerações para com os seus semelhantes. O sistema econômico, não só impôs a necessidade da acumulação como condição de realização pessoal, como deu propriedades sociais aos objetos de consumo, fazendo dos mesmos, verdadeiros indicadores do progresso do indivíduo e de sua realização pessoal, como bem observa M. Oliveira:
Elas – as coisas – adquirem, no capitalismo, determinações novas, propriedades sociais; elas são elemento decisivo no processo de constituição da sociabilidade, uma vez que no capitalismo o mecanismo de troca medeia a sociabilidade; as conexões reais e a interação entre os homens, entre as empresas individuais efetivam-se pela comparação do valor dos bens e de sua troca. Já que se trata de uma produção individual, marcada pela ausência de qualquer regulação social direta do processo de produção e se faz na esfera da circulação pela mediação da troca privada dos produtos individuais do trabalho.[3]
Assim sendo, o amor, o cuidado, o afeto se tornam também mercadoria. A insensibilidade em relação ao sofrimento humano é uma das expressões mais claras do vazio humanístico a que se entregou a nossa época. A nosso aviso, não se trata simplesmente de uma atitude anti-humana ou de contraposição em relação ao humanismo e ao personalismo moderno, trata-se, na verdade de algo bem mais grave, ou seja, da consideração de tudo aquilo que transcende a esfera estritamente material, utilitária, individual e local como sendo inexistente ou no mínimo irrelevante.
Ademais, o advento da tecnologia da informação e dos social networks aos poucos vem rompendo, de forma radical, as relações verdadeiramente humanas e humanizantes. O contato pessoal, a presença interpeladora do interlocutor é anulada completamente. O diálogo e o confronto de ideias, em nosso tempo, se dá de modo solitário e impessoal. Já no princípio do séc XXI, L. Boff alertava acerca da mecanização das relações interpessoais, sinalizando os consequentes danos à existência coletiva e ao próprio processo de humanização que se dá, necessariamente, através da convivência.
A sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode conectar-nos com milhões de pessoas sem precisarmos encontrar alguém. Pode-se comprar, pagar as contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme sem falar com ninguém. Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas não precisamos sair de casa. Tudo vem a nossa casa via on line. A relação com a realidade concreta, com seus cheiros, cores, frios, calores, pesos, resistências e contradições é mediada pela imagem virtual que é somente imagem. O pé não sente mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura. O mundo virtual criou um novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque, do tato e do contato humano.[4]
O cenário preocupante não deve aparecer-nos como o colapso final da existência e da convivência humanas. Deve despertar-nos para a necessidade de cultivarmos os espaços de convivência propriamente humana. Não se trata de abandonarmos a tecnologia mas de rompermos a relação de submissão irrestrita e exclusiva. Faz-se necessário um esforço comum para que se possa passar da indiferença ao afeto, do cuidado egocêntrico com a imagem e o status pessoal ao cuidado desinteressado para com o outro.
Recuperar o espaço humano vital da família como lugar por excelência do acesso aos valores e comportamentos propriamente humanos e humanizantes é um primeiro passo para superarmos este «hiato» na capacidade humana de reconhecer-se no outro e de pôr-se desinteressadamente ao cuidado de alguém, de sacrificar-se por amor, de perder-se para ganhar-se.
Como se pode facilmente intuir, não se trata de criar uma nova teoria psicossocial ou de elaborar novas psico-pedagogias ou mesmo de implementar novas legislações que obriguem ao cuidado mútuo. Trata-se apenas de recobrar a nossa mais profunda identidade humana. Este despertar ao mesmo tempo em que nos põe em relação de afeto nos torna livres e verdadeiramente senhores de nós mesmos. Deixamos de lado a paranoia de querer “provar para todo mundo que não precisamos provar nada pra ninguém”[5].
Amar e cuidar, sonhar e acreditar contra todas as probabilidades, ser afetuosos sem medo de sermos considerados fracos, não é apenas um dever que temos para com os outros, trata-se muito mais de um dever que temos para conosco, para com a nossa mais profunda realização enquanto seres humanos. Redescobrir o poder de um abraço, de um sorriso e mesmo de uma gargalhada constrangedora é reaprender a ser gente. Redescobrir-se nas lágrimas de alguém ou no silêncio de quem aos poucos nos está a deixar é permitir que a vida seja muito mais que a efêmera e irreal matéria fria das coisas. Precisamos, mais que nunca, contemplar a aurora de um mundo novo, mais responsável, mais cheio de cheiros, gostos, sons, sonhos, esperanças, cuidado, afeto..., enfim, mais cheio de genuína e indispensável humanidade. Este mundo não está longe de nós, está dentro de nós porque este mundo que esperamos somos nós.
Pe. Edson Bantim
(Artigo publicado na coluna Saúde e Bem-estar do Boletim Informativo da Santa Casa de Misericórdia de Mangualde de nov. de 2018)



[1] Z. Bauman. A arte da vida, Relógio d’água, Lisboa: 2017, p. 61.
[2] Idem.
[3] Manfredo OLIVEIRA. Desafios éticos da globalização. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 58.
[4] Leonardo BOFF. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 6ed. Petrópolis: Vozes, 2000, p.11.
[5] Renato Russo na canção “Quase sem querer”, 1986.