
Esta geração de “vencedores” fez um
esforço “sobre-humano” para estabelecer as suas conquistas, para garantir o seu
espaço e para sobreviver à concorrência a que foram instigados a cultivar.
Contemporaneamente, devido à exagerada preocupação por conquistar um lugar em
meio a um mundo excessivamente competitivo, cada vez mais, nossa geração foi se
tornando egocêntrica e utilitarista. O valor dado a cada pessoa passou a
corresponder ao que esta pode oferecer à sociedade em termos,
predominantemente, materiais. Deste modo, a parte considerada “inábil” – para
não dizer “inútil” – da sociedade é relegada ao desprezo e ao abandono.
Primamos pela competência e pelo pragmatismo. Estes não dão espaço a realidades
como “amor desinteressado”, cuidado, sonho, afeto, ternura, gentileza. Para
sobrevivermos foi preciso que matássemos o que de humano existira em nós, e
assim, tragicamente descobrimos que “o teto que ganhamos nos roubou a
capacidade de admirar as estrelas”.
Nos tornamos aos poucos insensíveis
e indiferentes a tudo o que é imaterial e aparentemente «improdutivo». De fato,
o mal de nosso século não é uma realidade exterior ao ser-humano, mas é uma
profunda ferida em seu interior; um vazio de humanidade, de amor, de cuidado, de
afeto que resultam de sua atitude de «indiferença». Ironicamente, negamos e
suprimimos as emoções que nos punham em relação de proximidade uns com os
outros e cultivamos aquelas que enaltecem o nosso Ego e transformam o outro num
concorrente a ser vencido a qualquer custo. O outro não tem importância desde
que não nos atrapalhe em nossa corrida insana pelo sucesso, pelo poder, pela
riqueza. A indiferença ao outro tornou-se a forma natural de agir das
sociedades contemporâneas.
No dia 8 de julho de 2013, pouco depois de
tornar-se o pastor universal da Igreja Católica Romana, Papa Francisco visitou
a ilha italiana de Lampedusa, onde milhares de imigrantes desembarcam em fuga
das condições degradantes de suas terras de origem. Em sua homilia Francisco
faz uma grave advertência acerca deste mal que consome a nossa humanidade e nos
torna “polidamente selvagens”.
“A cultura do bem-estar, que nos
leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros,
faz-nos viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são
nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à
indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença.
Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença.
Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa,
não é responsabilidade nossa! Reaparece a figura do «Inominado» de Alexandre
Manzoni. A globalização da indiferença torna-nos a todos «inominados»,
responsáveis sem nome nem rosto”, diz o Papa.
Isto não significa que nossas sociedades
não se preocupem com os problemas mundiais. O que se revela é justamente o
contrário: cresce consideravelmente a preocupação com o meio-ambiente, com as
pessoas em situações menos favorecidas, com os habitantes das zonas de conflito
etc. Como bem observa o sociólogo polaco Zigmunt Bauman, “a ascensão
espetacular da autorreferencialidade egoística caminha, paradoxalmente, a par
de uma crescente sensibilidade à miséria humana, à execração da violência, da
dor e do sofrimento que afligem o mais distante dos estranhos, e às erupções
regulares de caridade focalizada (terapêutica)”[1]
Como bem descreve Bauman, tais
“impulsos morais” e “erupções de caridade”, estão relacionados, quase sempre,
às realidades o mais distante possível dos indivíduos que as sentem. Em
síntese, a sensibilidade em relação ao sofrimento do outro se ativa se este
“outro” estiver muito longe e se isso não exigir uma ação direta. Quando se
trata de agir em favor de uma outra coisa (ou alguém) que não seja nós mesmos,
as exigências do Ego, as paixões, o bem-estar pessoal, a comodidade física e
econômica estão em primeiro e último lugares. Na verdade, nosso sentimento de
caridade e de preocupação com a dor alheia não está ligado a um compromisso de
agir em consequência. Nos comovemos com o sofrimento do distante, com as
grandes causas ambientais que são amplamente propagandeadas pelos mass media, mas continuamos indiferentes
ao sofrimento de quem está próximo e não estamos dispostos a assumir um estilo
de vida ecologicamente sustentável.
A indiferença em relação ao próximo
não é privilégio dos ricos e abastados. Tornou-se o estilo de vida
preponderante. Nos países pobres, com extrema desigualdade social, as pessoas
simplesmente habituaram-se com tal realidade, tanto os ricos como os miseráveis.
O espectro da indiferença, paradoxalmente, não é indiferente a ninguém. Atinge
todas as classes, raças e culturas. A consequência é que tendo-nos acostumado a
sermos indiferentes aos outros, acabamos por ser indiferentes a nós mesmos.
Nossa alma humana, desnutrida e desesperada aos poucos morre dentro de nós. Em
termos concretos, basta observarmos o alto índice de doenças mentais como a
depressão, a ansiedade, a síndrome de pânico etc. Segundo dados da OMS de 2014,
por exemplo, cerca de 800 mil pessoas se suicidam por ano. Apesar da
predominância ser entre os maiores de 65 anos, assusta o fato de que a quarta
maior causa de morte entre jovens de 15 – 29 anos seja o suicídio.
Muitas são as teorias e
pseudo-explicações acerca dos motivos pelos quais a nossa sociedade tornou-se
desiludida da vida ou simplesmente ignora o significado da própria existência.
Há porém uma constante em todas elas: o isolamento sócio-emocional. O efeito
direto da indiferença em relação aos semelhantes não produz consequências
apenas sobre os abandonados, pois à medida em que desconsidero a importância do
outro, experimento em mim mesmo a solidão provocada pelo meu Ego inflado.
Compreendemos o amor como um dever do outro para comigo e não como doação
incondicional, como movimento desinteressado na direção de alguém que, não
necessariamente, o mereça ou o exija. Eliminamos do amor o sentido do
sacrifício.
Em geral, segundo Z. Bauman, “as
manifestações de devoção a essa ‘outra coisa (ou alguém) que não a nós mesmos’,
ainda que sinceras, apaixonadas e intensas, não chegam ao autossacrifício.”[2]
Longe de querermos renunciar a determinadas comodidades a que consideramos
razão de ser da nossa felicidade, da nossa independência/liberdade, tendemos a
afastar de nós tudo o que nos limita ou que nos impõe a necessidade de escolha
radical. Tudo o que implica perda é considerado como mal e, por conseguinte,
deve ser evitado.
Contemporaneamente, as estruturas
de organização social de nosso tempo se formaram de tal modo a exigirem dos
indivíduos determinados comportamentos consequentes e aparentemente
inevitáveis. A necessidade de trabalhar o dia todo e todos os dias, a
necessidade de prover à família um estilo de vida padrão que se adeque às
exigências conceituais dos “formadores de opinião” ocupa o lugar dos abraços,
do afetos, dos encontros e desencontros meramente humanos. É mais importante
que se vá ao balé, à ginástica, à aula de inglês que passear de mãos dadas
com a família em uma tarde no parque, que sentar ao pé da avó que já não consegue
interagir verbalmente, que estar em família.
A extinção dos espaços de
convivência, das relações desinteressadas e carregadas de conteúdo humanizante
tem provocado danos quase irreparáveis na sensibilidade das novas gerações para
com os seus semelhantes. O sistema econômico, não só impôs a necessidade da
acumulação como condição de realização pessoal, como deu propriedades sociais
aos objetos de consumo, fazendo dos mesmos, verdadeiros indicadores do
progresso do indivíduo e de sua realização pessoal, como bem observa M.
Oliveira:
Elas – as coisas – adquirem, no capitalismo,
determinações novas, propriedades sociais; elas são elemento decisivo no
processo de constituição da sociabilidade, uma vez que no capitalismo o
mecanismo de troca medeia a sociabilidade; as conexões reais e a interação
entre os homens, entre as empresas individuais efetivam-se pela comparação do
valor dos bens e de sua troca. Já que se trata de uma produção individual,
marcada pela ausência de qualquer regulação social direta do processo de
produção e se faz na esfera da circulação pela mediação da troca privada dos
produtos individuais do trabalho.[3]
Assim sendo, o amor, o cuidado, o
afeto se tornam também mercadoria. A insensibilidade em relação ao sofrimento
humano é uma das expressões mais claras do vazio humanístico a que se entregou
a nossa época. A nosso aviso, não se trata simplesmente de uma atitude
anti-humana ou de contraposição em relação ao humanismo e ao personalismo
moderno, trata-se, na verdade de algo bem mais grave, ou seja, da consideração
de tudo aquilo que transcende a esfera estritamente material, utilitária,
individual e local como sendo inexistente ou no mínimo irrelevante.
Ademais, o advento da tecnologia da
informação e dos social networks aos
poucos vem rompendo, de forma radical, as relações verdadeiramente humanas e
humanizantes. O contato pessoal, a presença interpeladora do interlocutor é
anulada completamente. O diálogo e o confronto de ideias, em nosso tempo, se dá
de modo solitário e impessoal. Já no princípio do séc XXI, L. Boff alertava
acerca da mecanização das relações interpessoais, sinalizando os consequentes
danos à existência coletiva e ao próprio processo de humanização que se dá, necessariamente,
através da convivência.
A sociedade contemporânea, chamada sociedade do
conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicação e solidão entre as pessoas. A Internet pode conectar-nos com
milhões de pessoas sem precisarmos encontrar alguém. Pode-se comprar, pagar as
contas, trabalhar, pedir comida, assistir a um filme sem falar com ninguém.
Para viajar, conhecer países, visitar pinacotecas não precisamos sair de casa.
Tudo vem a nossa casa via on line. A
relação com a realidade concreta, com seus cheiros, cores, frios, calores,
pesos, resistências e contradições é mediada pela imagem virtual que é somente
imagem. O pé não sente mais o macio da grama verde. A mão não pega mais um
punhado de terra escura. O mundo virtual criou um novo habitat para o ser
humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela falta do toque,
do tato e do contato humano.[4]
O cenário preocupante não deve
aparecer-nos como o colapso final da existência e da convivência humanas. Deve
despertar-nos para a necessidade de cultivarmos os espaços de convivência
propriamente humana. Não se trata de abandonarmos a tecnologia mas de rompermos
a relação de submissão irrestrita e exclusiva. Faz-se necessário um esforço comum
para que se possa passar da indiferença ao afeto, do cuidado egocêntrico com a
imagem e o status pessoal ao cuidado
desinteressado para com o outro.



Pe. Edson Bantim
(Artigo publicado na coluna Saúde e Bem-estar do Boletim Informativo da Santa Casa de Misericórdia de Mangualde de nov. de 2018)
[1] Z. Bauman. A arte da vida, Relógio d’água, Lisboa:
2017, p. 61.
[2] Idem.
[3] Manfredo OLIVEIRA. Desafios éticos da globalização.
São Paulo: Paulinas, 2001, p. 58.
[4] Leonardo BOFF. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 6ed.
Petrópolis: Vozes, 2000, p.11.
[5] Renato Russo na
canção “Quase sem querer”, 1986.